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Parido Comunista Português

Intervenção de Suzana Ralha, música e professora

Algumas notas sobre a democratização da cultura

Candidata independente nas listas da CDU

Como conceito, a ideia de cultura é muito diversa e muito insuficiente. Prefiro a ideia de culturas, no plural. Sozinha, cada cultura é sempre incompleta. Só faz sentido quando se cruza com as outras. Nesse sentido, a cultura não é só uma coisa que se tem. É algo que se vive e que se é, entre muitas maneiras de viver e de ser. A cultura neste sentido é a casa do sentido das pessoas que a habitam e que ela, cultura, habita e modela. São os modos de vida, os valores, as expressões artísticas que as pessoas, os povos, as comunidades encontram para simbolizar as suas existências.

No sentido mais convencional, usa-se muitas vezes a palavra “cultura” para designar as produções artísticas. Toda a arte é cultura, mas nem toda a cultura é arte. Dentro da arte encontram-se muitas pluralidades. As suas formas e obras plásticas, imagéticas, musicais, literárias. De criação erudita, aquilo que se chamou “alta cultura”. E de criação espontânea baseada em tradições a que se chama muitas vezes “cultura popular”.

São, de facto, coisas diferentes. O fenómeno da associação das artes na modernidade, a partir das revoluções burguesas sobretudo do século XVIII, à burguesia correspondeu a dois grandes movimentos de hierarquização de qualquer coisa como uma vitória, uma superioridade da chamada “alta cultura” sobre as formas populares de viver e expressar o mundo simbólico e da produção de sentido, que é a pedra de toque de qualquer expressão que chamemos cultural. Esses dois movimentos da modernidade foram: 1) a captura da fruição cultural pela burguesia triunfante, por um lado. Que fez da cultura uma coisa sua, exclusiva e que exclui e 2), por outro lado, a orientação da produção cultural e artística para o mercado. A ideia de que a cultura, como tudo, serve para dar lucro.
Quando se fala da cultura, hoje em dia, e não se fala muito, é como em quase todo o resto para perguntar: quanto custa? Quanto rende? Isto é uma perspetiva mercantilista da cultura. Como se tudo na vida dos seres humanos servisse para que alguém lucre, mesmo que outro alguém perca.

Por isso, a questão do acesso à cultura e à fruição cultural só pode aparecer condignamente, se não estiver subordinada à ideia de uma mercadoria ao alcance de uns e não de outros.

Mas não é só aí que estão os problemas do acesso. Numa ideia mais completa sobre esse assunto, o acesso à cultura e à sua fruição precisam de um sistema de ensino e de educação em que as artes não sejam meramente ornamentais e as questões da cultura meramente laterais. Sem uma educação em que as diferentes culturas nas escolas e nas comunidades apareçam como maneira de as coisas fazerem sentido, fazerem muitos sentidos diferentes para as pessoas. Sem uma educação em que as diferentes culturas nas escolas e nas comunidades sejam valorizadas e habilitem professores e alunos, famílias às formas da produção cultural, à interpenetração com outras culturas. Sem isso, o problema do chamado acesso à cultura não começa sequer a ir-se resolvendo.

A captura burguesa e exclusivista das produções artísticas e da sua fruição e apreciação não se resume a uma questão contabilística. Não vale a pena baixar o preço dos bilhetes dos museus se, para grande parte da população é feito sentir que está a entrar num museu como quem usurpa um espaço que não só não é seu, como tem tudo para que essa população se sinta mal lá dentro, se sinta em casa alheia. 

Existe aqui um problema muito concreto. Sentimo-lo no Porto como noutras cidades. A libertação, a democratização dos espaços culturais em favor de camadas populacionais amplas não tornaria menores estes espaços de realização da cultura artística. Pelo contrário, permitiria torná-los maiores, isto é, torná-los verdadeiros espaços de difusão e fruição da cultura artística. Não podemos alcançar esse objetivo enquanto a maioria das pessoas entra nestes espaços com o constrangimento de quem entra no Banco que lhes vai ficar com a casa.

É por esse motivo que a captura burguesa e exclusivista da arte e da sua fruição resultou numa armadilha para a própria burguesia que ficou com um troféu incompleto, o de uma forma elitizada de pensar no que chama arte e cultura. Uma forma que, no limite, não lhe serve para nada. Muitas vezes, vê-se em muitos rituais da chamada alta cultura que muita gente foi lá mais para ser vista do que para ver. É por esse motivo, que nas experiências em que participei de áreas da educação e de comunidade, nas capitais europeias da cultura no Porto e Guimarães, tive sempre a consciência de que era mais fácil tocar sensivelmente as pessoas normalmente afastadas da chamada “alta cultura”, do que aquelas a quem, á partida, pelo seu estrato social, económico e de formação se destinaria essa “alta cultura”. E que essa facilidade aumentava quando se misturavam diferentes estratos socioeconómicos das populações, com as suas respetivas “culturas”.

É também por isso que deslocar os centros e residências de produção artística e cultural para as zonas menos convencionais, levá-las do centro das cidades para os seus, assim chamados, “bairros” é outra das modalidades de democratizar e naturalizar a convivência entre as artes e as pessoas a quem, no limite, as artes se destinam. Não há nenhum bom motivo para não sedear uma galeria ou orquestra sinfónica numa zona pobre e de exclusão da cidade. Pelo contrário, só vejo boas razões para o fazer.
Por fim, deixava uma nota adicional sobre o que chamo a democratização da cultura. O facto de, por um lado, as formas da arte serem historicamente apropriadas por quem tem as posses e os poderes para isso, os aristocratas de ontem, os burgueses de hoje, quem quer que seja... Mas, por outro lado, o facto de a imensa generalidade dos seus produtores, os artistas, serem trabalhadores, muitas vezes assalariados, outras vezes nem isso. Como dizia o maestro e professor canadiano, Peter Bergamin, que participou connosco em dois destes projectos de comunidade nas capitais europeias da cultura do Porto e Guimarães, “a arte que se habituou a ser feita para os ricos, nunca deixou de ser feita pelos pobres”. Talvez valha a pena não o esquecer.
 

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