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Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP, Lisboa – CCB, Conferência - “A Europa e a política fiscal”

CDU participa na Conferência - «A Europa e a política fiscal»

Falar de Europa e de política fiscal é sublinhar uma contradição, sobretudo no actual contexto, onde a integração europeia, cumprindo o Tratado de Lisboa, dá novos saltos qualitativos na centralização do poder, criando novos mecanismos ao serviço dos interesses do directório de grandes potências, conduzindo, conjuntamente com o FMI e o BCE, uma intervenção externa em Portugal com vista ao resgate do sector bancário europeu, sobretudo alemão, constituindo um verdadeiro programa de submissão e de agressão ao povo e ao país.

Contradição porque a política fiscal, a capacidade de tributar num determinado território económico, é um dos elementos essenciais da soberania de um estado, um garante da sua independência e da sua liberdade de fazer escolhas, ao serviço do desenvolvimento económico e social do seu povo. A política fiscal, a obtenção de receita fiscal, é indispensável para financiar as opções estratégicas de investimento público, a rede de serviços públicos e as funções sociais de Estado, nomeadamente a segurança social, a saúde e a educação. Mas a política fiscal é também uma ferramenta indispensável de intervenção económica e social, no apoio ao rendimento e da dinamização do tecido produtivo.

Instrumento para incentivar determinadas escolhas, como por exemplo taxas reduzidas de imposto para as pequenas empresas que se fixem em zonas desfavorecidas do interior, nomeadamente as rurais, ou para o sector cooperativo, que é um dos pilares do modelo económico inscrito na Constituição.

Mas sem dúvida que uma das questões mais importantes da política fiscal é a possibilidade directa de intervir na repartição e distribuição dos rendimentos, onde o princípio da progressividade da tributação assume um papel fundamental no combate às desigualdades sociais e na repartição da riqueza nacional.

Mas hoje a soberania fiscal está claramente amputada, por via não só dos constrangimentos comunitários, decorrentes da progressiva harmonização fiscal e da aplicação do Pacto de Estabilidade desde 1997, das orientações do denominado Consenso de Washington emanadas pelas principais organizações internacionais do sistema capitalista mundial, como o FMI e a OCDE, que estimulam a redução da imposição fiscal sobre o capital, também com o cunho ideológico de reduzir o peso e as funções do Estado ao nível económico e social, assim como o financiamento orçamental por via de impostos indirectos, como o IVA e outros impostos sobre o consumo, como forma mais simples de captar receitas fiscais, mas que estimulam a regressividade e a injustiça do sistema fiscal. Por exemplo, o agravamento previsto, no Acordo do PS do Governo, do PSD e do CDS com a Troika no aumento do IVA sobre a electricidade e o Gás natural de 6% para 13% ou 23%, para lá de um não esclarecido novo imposto sobre a electricidade, constituem mais um passo no agravamento das injustiças e na penalização da actividade produtiva. Isto num contexto, onde a entrada de Portugal na zona Euro, não só não trouxe as promessas então ditas de crescimento continuado do produto e do emprego, como pelo contrário contribuiu para uma década de estagnação económica (média anual de 0,6%), de contracção de 16% na produção industrial, de mais que a duplicação da taxa de desemprego, de agravamento dos défices comerciais e da dependência externa, com as necessidades de financiamento do exterior a aumentarem 35%, num valor acumulado que ascende a mais de 132 mil milhões de euros.

Portugal perdia (e perde) a soberania monetária e com ela a capacidade do uso da política monetária e cambial ao serviço do povo e do país, pondo toda a pressão dos ajustamentos económicos sobre os trabalhadores, nomeadamente sobre os salários e o emprego. O Euro foi uma moeda demasiado forte, pouco compatível com os níveis de produtividade da economia portuguesa (diferencial de 40 pontos percentuais da média europeia) e logo encarecendo as nossas exportações, reduzindo a nossa competitividade, penalizando o nosso sector produtivo!

O Euro foi mais um elemento de agudização e da insustentabilidade do modelo económico que foi seguido e incentivado nos últimos 35 anos, também com a mão externa, pelos sucessivos governos do PS, PSD e CDS. Modelo preparado com as duas primeiras intervenções do FMI em Portugal (1978-1979 e 1983-1985), incentivado com a entrada na União Europeia, nomeadamente com os Fundos Estruturais, e depois condicionado pelo Pacto de Estabilidade, o Euro, a Estratégia de Lisboa e hoje, pelo dito, Semestre Europeu.

Um modelo reexportador, dependente por isso da importação de matérias primas e de outros consumos intermédios, ao serviço dos interesses das empresas multinacionais que operam no espaço europeu, assente nos baixos salários e em sectores de baixo valor acrescentado, ao mesmo tempo que se destruía paulatinamente importantes componentes da indústria, da agricultura e pescas para servir os interesses de escoamento da produção do centro da Europa, sobretudo da Alemanha. E com a redução da produção, aumentavam as importações e com elas os défices e com eles o endividamento. Num modelo hoje cada vez mais favorável aos países exportadores, como a Alemanha, que apresentam excedentes comerciais elevados e que financia os défices dos países importadores, como a Grécia, Irlanda ou Portugal.

O endividamento nacional resulta deste modelo e o nosso défice público também. A estagnação económica pressiona a redução das receitas fiscais, por um lado, enquanto o Estado intervém para transformar dívida privada em pública, no dito salvamento, por exemplo, do sector bancário, como é o caso do BPN, BPP, das garantias dos empréstimos ou das isenções e benefícios fiscais concedidos.

Não deixa de ser caricato que, desde 1997, se fale em consolidação orçamental, aplicando-se sucessivos PEC para reduzir o défice público e no final de cada ciclo governativo o défice público seja sempre superior, com a economia e o emprego sempre em pior estado. O Governo PS/Guterres deixou um défice público de 4,3% do PIB, os Governos PSD/CDS de Barroso, Santana e Portas, de 6,1% e agora, o Governo de PS/Sócrates de 9,3%, revisto agora para 10,1% pelo INE (17 mil milhões de euros!). E a dívida pública essa mais que duplicou (+107% entre 2000 e 2009, mais 66,1 mil milhões de euros). Ou seja, se não se resolver o problema económico não se poderá resolver o problema financeiro.

O resultado desta política traduziu-se num aumento da carga fiscal sobre os trabalhadores, sobretudo os por conta de outrem, e as pequenas empresas. Na redução das transferências do Estado, dos apoios e prestações sociais. Numa política de privatizações que desbaratou o Sector Empresarial do Estado e a possibilidade deste alavancar uma estratégia de desenvolvimento económico nacional e de apoio às micro, pequenas e médias empresas. Veja-se, por exemplo, o impacto na estrutura de custos dos preços de monopólio praticados ao nível da electricidade (EDP) e dos combustíveis (GALP).

Esta política contribuiu para um agravamento da injustiça fiscal, reforçada também pela complexidade da legislação fiscal e as isenções e benefícios fiscais existentes, que deixam por tributar uma grande parte dos rendimentos, os de capital, do património e o mobiliário, contribuindo também para que as taxas efectivas de imposto sejam inferiores à taxa nominal de imposto. Para além disso a progressiva desregulamentação do mercado de trabalho, contribuindo para a desvalorização dos salários e estimulando a informalidade e o trabalho não declarado, contribui também para a fraude e evasão fiscal.

Existe uma injusta repartição da carga fiscal entre os rendimentos do trabalho e do capital, em sede de IRS (capitais e mais-valias) e de IRC. Aliás, tendo em conta também as medidas tomadas nos Orçamentos de Estado desde 2009 e dos PEC (1, 2 e 3), a tendência tem sido para a redução continuada do valor do IRC (uma redução de 8% face a 2009), prevendo-se que represente apenas 12,3% da receita fiscal em 2011. Em contrapartida a receita do IRS aumenta 12% (na sua quase totalidade na categoria A - Trabalho e H - Pensões do IRS), representado 29,4%, mais do dobro.

O IVA aumenta 23% e os outros impostos indirectos 3%. O IVA passa a representar 39,2% da receita fiscal e os impostos indirectos do seu conjunto 58,3%, o que mostra a crescente regressividade do sistema e a penalização dos trabalhadores de menores rendimentos e das camadas mais desfavorecidas da população. Nomeadamente se alguns bens essenciais, como por exemplo a electricidade, tiverem um agravamento da taxa reduzida para a taxa intermédia ou para a taxa normal, como já tinha sido pretensão do Governo e agora está no Memorando de entendimento com a Troika. Mas a questão dos benefícios e isenções fiscais, com a tributação do sector das actividades financeiras e de seguros, nomeadamente da banca, merece um sublinhado especial. Pois o que aqui está em causa é despesa fiscal, receita fiscal que podia ter sido cobrada e não foi.

As isenções e benefícios fiscais entre 2005 e 2010 ascenderam a 15,6 mil milhões de euros, ou seja, o equivalente ao défice público de 2009 antes da última revisão do INE. Se tivermos em conta as previsões contidas no orçamento de 2011, o valor passa para 17,8 mil milhões de euros, equivalente ao défice revisto de 2009. Nestes 69% são isenções em sede de IRC, ou seja, 12,3 mil milhões de euros (incluindo previsões do Orçamento 2011), o que equivale ao esforço pedido pela Troika de redução do défice entre 2010 e 2013 (10,4 mil milhões de euros), dos quais 77%, ou seja, 9,4 mil milhões de euros para a zona franca da Madeira, sobretudo para apoiar o sector financeiro e um conjunto de “empresas tabuleta” sem qualquer emprego criado, quase o dobro do programa de privatizações já incluído nos PEC e agora acelerado do Memorando de Entendimento. Nesse aspecto, aliás, o PSD quer ir ainda mais longe, propondo no seu programa reabrir o actual regime em vigor na Zona Franca da Madeira.

Se atendermos apenas a 2009, os lucros das empresas do sector das actividades financeiras e de seguros (com resultado contabilísticos positivos) ascenderam a 12,5 mil milhões de euros, 41% do total de lucros declarados no todo nacional, um aumento de 3 pontos percentuais face a 2007 (se juntarmos o comércio, onde se incluí a grande distribuição, ficamos com 54% dos lucros, juntando ainda a construção, ficamos com 59%). Facto que mostra não só a concentração e centralização dos lucros no sector financeiro, mas também o grau de expropriação que este exerce sobre o resto da economia, nomeadamente sobre o sector dos bens transaccionáveis. Mas a matéria colectável, sobre a qual incide a taxa de imposto de IRC, foi apenas de 3,9 mil milhões, ou seja, 8,6 mil milhões de euros de lucros foram isentados de qualquer tributação. Se estes lucros fossem tributados, o Estado poderia arrecadar mais 2,1 mil milhões de euros. Face aos lucros declarados, isto quer dizer que as empresas deste sector tiveram uma taxa efectiva média de imposto de 6,8%, enquanto no sector da industria transformadora a taxa efectiva foi de 14,8%.

De acordo coma Associação Portuguesa de Bancos, os Bancos tiveram uma taxa efectiva de 4,3% em 2009. Isto num contexto, em que do dito pacote de ajuda externa negociado de 78 mil milhões de euros, prevê que 12 mil milhões poderão ser destinados para a recapitalização do sector bancário e haverá uma linha de 35 mil milhões de euros em garantias para apoiar a colocação da dívida titulada dos bancos no exterior. Mas os benefícios fiscais também existem em sede de IRS, pondo em causa a progressividade das taxas, aumentando as deduções à colecta dos rendimentos do trabalho mais elevados e, por essa via, reduzindo as taxas efectivas de imposto.

Para o PCP o problema fiscal não é saber se sobem ou descem os impostos! Mas quais os que devem ser criados e subidos, e os que devem ser eliminados ou reduzidos, fazendo crescer a imposição fiscal sobre a riqueza qualquer que seja a sua forma, e aliviar a fiscalidade sobre o trabalho e o consumo das camadas populares e, muito importante, anular a falta de carga fiscal, sobre a riqueza que hoje, foge para offshores, que devem ser extintos.

Na verdade, é indispensável uma política fiscal que promova o aumento da receita, tendo em conta as necessidades de financiamento do Estado e o necessário equilíbrio das contas públicas. A política fiscal e orçamental tem de estar ao serviço do crescimento económico e da dinamização do mercado interno, uma política que implique uma ruptura com o actual modelo económico e político de abdicação de defesa do interesse nacional, que rompa o ciclo de dependência e endividamento em que o país se encontra, fruto de 35 anos de política de direita.

O aumento da receita não significa em si mesmo o aumento de taxas de imposto, pode ser conseguido com um alargamento da base de incidência tributária e a eliminação de isenções fiscais. E por um aumento da eficiência da máquina fiscal, na prevenção e combate à fraude e à evasão fiscal, reforçando os meios postos à disposição da administração fiscal e procedendo à total derrogação do sigilo bancário para efeitos fiscais. Mas para isso é necessário uma mais justa repartição da carga fiscal que alivie a carga fiscal sobre os trabalhadores e as micro, pequenas e médias empresas. Todo o rendimento e património deve ser alvo de tributação, sobretudo os de valor mais elevado ou que sejam considerados bens de luxo.

É necessário que se estabeleça o princípio geral do englobamento de todos os rendimentos, nomeadamente em sede de IRS, eliminando as taxas liberatórias e transformando-as em retenções, de forma a aumentar o contributo da tributação sobre rendimentos de capital, incrementos patrimoniais e o património mobiliário (acções, obrigações, etc.). O que implica também pensar em novas possibilidades de tributação. Por exemplo, a tributação autónoma de todas as operações de venda de títulos mobiliários, em Bolsa e fora dela, e das operações cambiais não justificadas por transacções comerciais, com uma taxa de 0,1%. O que podia gerar mais 130 a 140 milhões de euros de receita, ao mesmo tempo que se dava um contributo para desincentivar a especulação e reduzir a volatilidade dos mercados financeiros. Outro exemplo, o agravamento das taxas do IMT (compra de imóveis), do IMI (património imobiliário) e do IUC (imposto de circulação automóvel), para bens de valor elevado, considerados de luxo (como uma propriedade de valor superior a 1 milhão de euros). Ou ainda a tributação efectiva de todas as mais-valias relativas ao património mobiliário ou o agravamento da tributação das mais-valias resultantes da transformação do uso do solo, rústico/urbano.

Gerando mais receita, elevando a tributação do capital, podia ter-se uma política fiscal que invertesse o peso actualmente existente dos impostos indirectos face ao directos, aumentando a progressividade do sistema fiscal, permitindo a redução faseada das taxas do IVA e um reajustamento dos escalões ao nível do IRS, de forma a melhorar não só a progressividade, mas a reduzir a carga fiscal nos escalões de rendimento mais baixos e mesmo providenciar um crédito de imposto no primeiro escalão, de acordo com as despesas tidas, por exemplo, ao nível da saúde.

Combater as injustiças fiscais passa pela simplificação da legislação fiscal, mas sobretudo pela eliminação tendencial e selectiva dos benefícios fiscais, tendo em vista a aproximação das taxas efectivas das taxas nominais de imposto e uma maior equidade fiscal. Neste sentido, é prioritária a extinção dos benefícios fiscais (as isenções temporárias) concedidos à Zona Franca da Madeira e o estabelecimento de um diálogo ao nível da União Europeia com vista à eliminação dos denominados paraísos fiscais. É igualmente urgente reduzir também as possibilidades de fuga ao fisco decorrentes de planeamento fiscal e da chamada arbitragem fiscal que, fugindo do julgamento em Tribunal, permite aos grupos económicos e financeiros, com enorme poder na contratação de especialistas e técnicos juristas e contabilísticos, margem acrescida de não pagamento!

Ao nível das micro, pequenas e médias empresas é necessário uma política fiscal mais transparente e estável que preconize a eliminação do pagamento especial por conta (em 2009, 15% das empresas pagaram PEC, sem ter sido apurado qualquer imposto a pagar) e a aceleração dos prazos de reembolso do IVA. O PEC acaba por impor a muitas pequenas empresas uma taxa efectiva de IRC bastante superior à taxa nominal de 25%!

Também na taxa de IRC podia haver uma diferenciação, com a possibilidade de redução da taxa legal nominal de IRC em 10% para as pequenas empresas, para 22,5% e um efectivo agravamento em 20% sobre a taxa nominal (25%) passando esta para 30% sobre os lucros superiores a 50 milhões de euros das grandes empresas.

Mas a política fiscal é apenas um vértice de uma política mais abrangente que responda aos principais problemas com que as pequenas empresas se vêem confrontadas. Uma política que apoie o acesso ao crédito e a redução dos custos de financiamento, a regulamentação dos preços da electricidade, gás e combustíveis (preços aproximados da média da União Europeia antes de impostos, corrigida pelo diferencial de produtividade); a redução dos prazos médios de pagamento a fornecedores por parte da administração central e local e dos organismos públicos, assim como o cumprimento dos prazos de pagamentos das dívidas relacionadas com programas e medidas de apoio público; a redução da carga burocrática com normas e licenciamentos, assim como com os novos normativos contabilísticos e o excesso de divulgação que acarretam, como a passagem para o SNC. E obviamente maiores apoios públicos à modernização e ao investimento, aproveitando nomeadamente as verbas disponibilizadas pelo QREN.

Muitas das medidas aqui preconizadas são uma alternativa clara à política fiscal seguida, de penalização dos trabalhadores, das camadas mais desfavorecidas e das micro, pequenas e médias empresas. O PCP apresentou essa mesma alternativa, fazendo propostas concretas na AR, aquando da discussão do PEC, que possibilitariam uma arrecadação de 3 mil milhões de euros de receitas adicionais. PS e PSD optaram pelas soluções mais simples, penalizar os mesmos de sempre.

Para o PCP, a questão central é o aumento da produção nacional associado a uma melhor repartição e distribuição da riqueza, num contexto de agravamento das desigualdades sociais e de uma cada vez maior polarização/concentração do rendimento. Num contexto onde a receita da Troika, de continuidade dos PEC, a concretizar-se, aponta já para dois anos de recessão económica, para uma nova quebra do rendimento disponível das famílias e um novo máximo histórico para a taxa de desemprego. Isto enquanto promove a venda a retalho do SEE ao capital estrangeiro.

A ruptura necessária, passa também por uma política fiscal que assegure a redistribuição da riqueza, promova uma mais justa repartição da carga fiscal, com a contribuição de todos os rendimentos e património, na geração de receitas fiscais que permitiam sustentar as escolhas orçamentais, que garantam os investimento públicos, os serviços públicos e as funções sociais do Estado, que contribua para criação de mais riqueza nacional e para a elevação das condições de vida do povo. É este o nosso compromisso.

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